Victor Sismeiro, é um escriba com o mesmo sucesso mediático
de Tales de Mileto. Por desgraça e porque sua profissão não lhe permite o
tempo de que Tales de Mileto dispunha, a sua obra é muito mais esparsa e
menos extensa.
É contudo, digna de uns momentos da nossa atenção.
Com a devida autorização do proprietário, aqui se publicam
alguns artigos de recorte filosófico, saídos da inspirada pena de Victor
Sismeiro.
Os encarregados da manutenção deste pequeno recanto da rede
mundial de comunicações digitais, não se responsabiliza pelos danos
intelectuais que a leitura destes escritos possa vir a causar nos intelectos
mais frágeis de alguns leitores.
Este pequeno recanto não se encontra infectado pelo vírus
"politicamente correcto". Pessoas que manifestem sintomas dessa natureza,
são aqui aconselhadas a abster-se de continuar a leitura.
Os deuses não cagam
ou
o joelho de Lobo Antunes
Vinda do outro lado do oceano, a histeria chegou carregada de apoucamento da
condição humana, como se
fora herdeira de um novo santo ofício nascido do outro, velho, peçonhento e
assassino em fogueiras
públicas e festejadas pela populaça e pelas elites contemporâneas. Instalou-se e
espalhou o seu vómito
entre os consumidores das amaricadas crendices hollywoodescas e novaiorquezas,
substracto essencial da
cultura do faz-de-conta e do politicamente correcto e tornada na
única ocidentalmente aceite.
Combatente abnegada contra a Natureza, a histeria, cada vez mais colectiva,
invade o mundo humano e
persegue a sua condição, usando como arma favorita a exposição e denúncia
públicas de tudo quanto não
respeita os seus preceitos e caprichos: o ser humano tem de perder a mania de
que é animal e perceber que
está a evoluir, imperativamente, para a divindade. Esta realidade irrecusável é,
todos os dias, comprovada
pela ciência e pelos seus progressos: a vida de cada um não acaba no termo do
seu prazo de validade, mas
no momento em que a ciência o decidir; a vida de cada um não decorre ao sabor da
Natureza, mas ao sabor
da descoberta e da investigação que, mais dia, menos dia, virá demonstrar que
começará para não mais
acabar. Mais: começará dentro de uma proveta e no meio de um caldo
físico-químico que substituirão para
sempre o útero feminino, a placenta e o líquido amniótico.
Como tal, também o comportamento de cada um já deixou de ser gerido pelas leis
simples da Terra Mãe
para passar a sê-lo por outras bem mais complexas geradas em laboratório e nas
iluminadas congeminações
de novas filosofias.
Ciente de tudo isto, a histeria queima hoje nas fogueiras da comunicação todos
os que não respeitam a nova
ordem, devessem ou não arder à luz das velhas regras que já regeram a condição
humana: não interessa se é
ou não anti-natural, o que interessa é que enjeitou o caminho da divindade; não
interessa se respeitou ou
não a sua condição e a do outro, o que interessa é que arda como prevaricador
que passou a ser ao sabor da
nova razão.
E assim se constrói uma cultura que só tem lugar para deuses e heróis, mesmo
quando cada um faz apenas
aquilo que se espera que faça
–
o bombeiro, o polícia, o soldado, mas também o professor, o pai, a mãe, o
irmão, o vizinho... –
ou para quem, não sendo um ou outro, encontra a única forma de ter lugar neste
mundo
preconceituoso sendo ou armando-se em vítima, espécie cuja protecção é exclusiva
a deuses e heróis.
Nesta condição se colocou o joelho de Lobo Antunes em busca da indulgência da
cultura vigente e
esquecendo que, se não é um herói, poucas condições tem para ser um deus pelo
facto simples e capital de
que os deuses não cagam. Restou-lhe ser ou armar-se em vítima de assédio de um
professor de moral lá
para meados do século passado. E pode o pronunciado assediador já ter ardido nas
chamas do inferno, não
interessa; o que interessa a Lobo Antunes é que também ganhou lugar na cultura
do faz de conta, porque
isso era o que lhe estava a faltar.
Victor Sismeiro
19 de Fevereiro de 2018
O Senhor Regedor
Bem ciente das suas prerrogativas e porque ninguém se atreveria a contestar a
sua autoridade,
ele achava-se
o verdadeiro “rei-da-giga”:
atrevesse-se
alguém a atravessar-se-lhe no caminho
e o caldo saltava pela panela fora. E foi assim que ele conquistou o respeito
dos vizinhos, que é
como quem diz o medo e a subserviência de todos os fregueses locais.
Bem ciente de que era a cachopa mais desejada da freguesia
–
pudera, com aquele corpo
moldado por um escultor clássico e um olhar que parecia verter lágrimas de tão
simultaneamente brilhante e transparente
–
ela não aceitou namoro quando o Orlando, rapaz
cujo corpo teria sido moldado pelo mesmo artista ou por um seu discípulo,
trabalhador
esforçado e respeitado pelos novos e velhos do lugar, se atreveu a aproximar-se
pedindo a sua
anuência com promessa de casamento à mistura; a mesma recusa ouviu o Serafim,
que até já
tinha casa posta, que os pais tinham ajudado a pagar com o proveito da venda dos
pinheiros
abatidos na gândara. Ela sentia-se demasiado especial para se entregar a um
qualquer zé-
ninguém-ou-coisa-pequena que se arrojasse.
E foi assim que ela acabou casada com o Marcolino da Vicência, já com uns
quarenta e muitos
anos, mas famoso regressado do Brasil que denodadamente se esforçava por uma
comenda
que tinha tentado comprar do lado de lá do Atlântico sem sucesso. E o casamento
aconteceu,
com festa de dois dias, confeitos arremessados aos garotos à saída da capela,
foguetes até
fazer doer os ouvidos, jantar para a maior parte da freguesia, mais foguetes e
almoço no dia
seguinte que “É uma pena estragar tanta comida”. Ninguém soube se foram felizes
e por
quanto tempo mas, já no dia do casamento, o Senhor Regedor, mais ou menos da
idade do
recém-casado, se achou no direito de reivindicar o seu estatuto e a noiva foi
por ele
requisitada quando, depois dos espíritos libertados pelo álcool do espumante
entretanto
consumido, se chegou ao momento do tradicional bailarico com que se encerravam
as bodas.
Pouco tempo depois, em particular na taberna da aldeia, começou a falar-se do
Senhor
Regedor e das suas andanças com a mulher do Marcolino, mas este fazia de conta
que não
sentia as agulhadas que lhe eram dirigidas e lá ia meneando a testa, cada vez
mais pesada,
como podia.
Um ano e pouco depois o Marcolino da Vicência, que fora ao Brasil voltar a
tentar resolver
aquela coisa da comenda que tanto dinheirinho já lhe tinha custado, foi
surpreendido pela
ordem de prisão ouvida da boca de um sujeito sinistro, de fato e chapéu pretos,
a quem foi
conduzido quando chegou ao cais de Alcântara. As duas noites seguintes passou-as
nos
calabouços da António Maria Cardoso, mas acabou por ser transferido para a
Antero de
Quental, em Coimbra porque, sobre o Marcolino, não caía suspeita de ter
quaisquer ligações
ao Partido Comunista, apenas a denúncia do Senhor Regedor. Nunca se soube como
foi
tratado pela PIDE pois da boca daquele paz-de-alma nunca se ouviu uma queixa,
nem da PIDE
nem da mulher, que já era mais do Senhor Regedor do que dele.
Anos depois, após o 25 de Abril, o Senhor Regedor sentou-se na minha frente. Na
Antero de
Quental tinha deixado de funcionar a PIDE para passar a ser a sede em Coimbra da
sua
Comissão de Extinção e eu estava lá, a convite do capitão Pegado, vindo do
Quartel-General da
Região Militar do Centro. O Senhor Regedor já não o era, era uma figura curvada
ao peso da
idade (e da consciência?), de cabelos poucos e brancos e de olhar pousado nos
pés,
transpirando medo, subserviência e humildade. De entre outras, à pergunta sobre
o que o
motivara a fazer a denúncia à PIDE de que o Marcolino era um perigoso
subversivo, o ex-
Senhor Regedor começou por responder que devia haver engano, que nunca tinha
tido nada
contra o Marcolino, de quem era muito amigo...
e que até visitava muitas vezes a sua casa
–
facto do qual também nós estávamos cientes.
O camarada de armas e ofício que me acompanhava perdeu a paciência e retirou do
dossier
um documento que pousou na frente do ex-Senhor Regedor com um murro na mesa e um
“Deixe-se
de merdas e diga-me
o que é isto!?”. O ex-Senhor
Regedor balbuciou qualquer coisa
imperceptível e o meu camarada, com o indicador em cima do documento, berrou
qualquer
coisa como “Olha para aqui, sacana! Diz-me
o que é isto!”.
O ex-Senhor Regedor tremeu, balbuciou, chorou, arrependeu-se...
e acabou a confessar coisas
inconfessáveis que me levaram a uma primeira e inesquecível experiência sobre a
verdadeira
natureza humana.
Até então sempre odiei os bufos; desde então vivo na incerteza de se os devo
odiar ou se devo
ter pena deles.
Victor Sismeiro
Nota: à excepção do nome do capitão que me convidou para a
Comissão de Extinção da Ex-
PIDE/DGS, os nomes dos envolvidos são ficcionados.
Esta terra só dá laranjas...
... pelo menos parece, a ver pelos escaparates. Do tempo, ou de fora dele, elas
inundaram a
feira, tornaram-se omnipresentes e expulsaram o resto da fruta para lá da linha
do nosso
horizonte. Nem uns limõezitos se vêem, apesar de serem citrinos como elas.
Quando muito
vão aparecendo por aí umas tangerinas mal criadas, a pender para o verde e a
saber a nada
(ou o contrário?).
Já me tinham avisado mas eu, que sempre fui um fiel consumidor do dito fruto à
mistura com
outros tantos, achei que estavam a exagerar: terra que dá laranjas também há-de
dar maçãs,
pêssegos e figos, pensei, acometido da ingénua, tola e santa ignorância que
caracteriza os aqui
recém-chegados. Mas os anos foram passando e aquela verdade inconveniente com
que fui
acolhido foi-se impondo, sobrepondo, redundante. Não importa se o terreno é
árido ou
encharcado como lameiro, não importa se é na encosta da colina ou na margem da
ribeira: a
única árvore de fruto que por cá vinga é a laranjeira.
Por uns tempos fui acomodando o estômago à conjuntura, mas o fígado e a vesícula
começaram a queixar-se e hoje confronto-me com graves problemas de digestão. São
demasiados anos a dieta de laranja aos gomos, em sumo, às fatias, às rodelas
açucaradas ou
não. Desculpem, mas não há estômago que aguente. É que já não se contentam em
ser apenas
fruta à sobremesa: estão em todas as refeições, tomaram conta das saladas,
acompanham os
assados, os grelhados e até os arranjos florais em casamento e baptizado,
cortejo e procissão
ou funeral. A bem dizer, impõem a sua presença em tudo quanto é festa e
celebração,
ritualista, gastronómica ou outra.
Mesmo para quem gosta, e nem sei se não será este o maior de todos os males,
temos de
convir que a qualidade da fruta é cada vez pior: nas primeiras colheitas ainda
ia aparecendo
uma ou outra de qualidade duvidosa, é certo, mas que, pelo menos, tinha algum
sumo; agora a
qualidade é nenhuma
e nem precisam de dar sumo...
que vertam aquela aguadilha insípida e
inodora do costume e que as faz parecer laranjas, é o que importa.
Mas o laranjal resiste, insiste e persiste movido sabe-se lá por que desígnios,
quase insinuando
a intervenção de uma qualquer divindade que, de quatro em quatro anos e há mais
de
quarenta, lhe faz despontar de novo o velho florido das promessas de que os
frutos nascentes
terão outro paladar e que haverá fruta de qualidade para todos, mesmo para quem
não gosta
de laranjas. Passado o tempo florido tudo volta ao mesmo: sem consistência e
substrato, as
novas laranjas velhas vão caindo por todo o laranjal, deixando o chão coberto de
um lodo
alaranjado e bafiento, onde apodrecem também todas as recentes promessas de boa
fruta
para todos. É verdade que nem todas caem, mas as poucas que resistem ao
dependuro no
laranjal nem um longo estio as amadurece: continuam a ser tão azedas como
aquelas que me
vêm dando cabo da vesícula.
O pior é que qualquer pau ao alto se faz laranjeira. Uns já nascem assim, de
semente ou de
estaca;
aos
outros,
nascidos-sabe-se-lá-o-quê,
prega-se-lhes
um
enxerto
e resolve-se o
problema. É que, árvore que queira florescer, não tem outro remédio. Mas, na
verdade, o que
não falta por aí é paus-ao-alto-a-quererem-ser-laranjeiras e florir bem no meio
do laranjal, que
é onde o terreno é mais propício e o desabrochar mais promissor. Alguns
nascidos-sabe-se-lá-
o-quê mas almejando florir, até dizem que são outra coisa e que estão no meio do
pomar por
engano; o que interessa é fazer parte do laranjal e poder espalhar acidez.
Uma noite destas sonhei que as voltava a ver, todas festivas e a distribuir
floridas promessas
velhas que os anos não esgotam. Depois as promessas foram murchando à medida que
o
florido se esvaía e os paus ao alto continuavam laranjeiras e outros eram feitos
nelas. O
laranjal crescia, avançava do pomar para a floresta e nem os eucaliptos lhe
resistiram: laranjas,
laranjeiras, laranjais... Acordei e, numa prova de absoluta insanidade ou de
mera alergia
psicológica, o meu estômago estava a sofrer por antecipação, trazendo-me à boca
refluxos de
acidez desusada.
Há quem diga que os sonhos são premonitórios e, a acreditar, fico mesmo num mau
pressentimento...
... e não há praga que lhes pegue?!...
Victor Sismeiro
Queixa dos passarinhos da minha aldeia aos últimos eleitos...
... e aviso aos próximos candidatos
Os mais velhos já sabem como têm de manobrar, mas os recém-nascidos ainda não
dominam
a arte dos repetidos golpes de asa necessários e acontecem-lhes sucessivos
desastres aéreos
que os jornais não noticiam. Tenho recomendado aos mais velhos que mandem os
mais novos
tirar um curso de pilotagem e navegação antes que aconteçam mais desgraças
provocadas
pela imensa teia de fios e cabos que contaminam o espaço aéreo da minha aldeia,
das aldeias
vizinhas e das aldeias vizinhas das vizinhas. Alguns mandaram os pequenos para
escolas de
contorcionismo mas, mesmo assim, os coitados não se safam com facilidade.
Então, aqui vai:
Na minha aldeia é uma vergonha e, conhecedores de que as pessoas já pouco
importam,
reivindicam os passarinhos da minha aldeia que, ao menos, não se permita maus
tratos aos
ditos, até porque a Lei vos pode vir a fazer pagar as contas e mandar-vos uns
tempos para a
gaiola, passe a expressão, evidentemente. E não lhes venham dizer que é a EDP, a
Vodafone, a
Nos, a Altice disfarçada de Meo ou a Nowo; eles sabem que estas empresas só
fazem o que V.
Exas. permitem que elas façam. A mim obrigaram-me, e muito bem, a criar uma rede
subterrânea para passagem de tudo o que é fiarada mas, meia dúzia de passos para
além dela,
é o caos e não há manobra ou contorcionismo que valha aos passarinhos. Dizem
eles que aos
espalhadores de postes e fios tudo é permitido, até que façam pouco de V. Exas..
Vejam lá, excelentíssimos senhores presidente da câmara e presidentes de junta,
que se
atrevem a mandar-vos perguntar: Sofrem de algum complexo de mulher-a-dias? Essas
é que só
olham para o lixo que está no chão (dizem eles que V. Exas. nem isso, porque o
chão também
está uma vergonha... e eles sabem do que falam; passam o tempo a viajar por
aí...), nem
sequer as incomodando o cotão e as teias de aranha que se vão acumulando em
suspensão
nos tectos. As teias de aranha também são lixo, excelências, assim como a rede
suspensa da
infindável fiarada que permitem que alguns dos donos-disto-tudo espalhem por
todo o lado.
Dizem a quem os quer ouvir que aquilo a que V. Exas. chamam progresso não pode
continuar
a ser sinónimo de desregra, de abuso e de destruição nem, em nome disso, se pode
permitir
que uma autêntica rede de arrasto nos impeça, e aos passarinhos por maioria de
razão, de
usufruir da já pouca Natureza que resta.
Até me sinto mal a reproduzir, mas lá vão as últimas: Pode ser que isto não vos
diga nada, mas
já V. Exas. se deram ao trabalho de pensar que a paisagem é também ambiente? Que
a
paisagem também dá ou tira qualidade de vida? E não vos envergonha o estado em
que se
encontra a paisagem da vossa terra? Ai nunca tinham pensado nisso?!... Ou é
preciso “tê-los
no sítio”
para enfrentar os poderosos e V. Exas. não têm? Então muitos se enganaram ao
confiar-vos os seus votos nas últimas eleições.
Victor Sismeiro
À VOLTA DA MÚSICA
Uma noite de reflexão sobre o que caracteriza a música
popular e/ou tradicional.
Na sequência de uma exposição de instrumentos musicais, com
relevo para os utilizados na música tradicional, esta tertúlia teve como orador,
Victor Sismeiro.
A música que surge aos cinquenta e picos minutos desta
reportagem, foi executada pelo grupo de música tradicional "PURX'IM" e que é
ensaiado pelo mesmo Victor Sismeiro. Em jeito de demonstrar que não se fala do
que se não sabe, há que demonstrar sermos capazes de executar as coisas sobre as
quais dissertamos.
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