ORION
19 Janeiro 1964
O início de um sonho...
Esse dia 19 de Janeiro de 1964 foi um domingo soalheiro de inverno, com
um céu muito azul e sem nuvens, vento quase nulo, um mar muito calmo e
que verdejava lá em baixo, arrancando reflexos dourados às águas que
vinham beijar as areias, nessa altura ainda limpas, deixando a flutuar
uma suave e irregular franja de espuma...
— Faltam 60 minutos! – disse eu, tirando o relógio do pulso e
colocando-o no peitoril da janela, ao lado do caderno que nos servia de
“check in” e dando baixa neste.
Virei-me para o Daniel e disse-lhe:
— Verifica o ângulo de inclinação da rampa e a temperatura exterior do
Orion.
— OK! Vou também verificar as ligações eléctricas e o sistema de
ignição... com tanta gente à volta do foguete, não me espanta nada que
lhe tenham dado um encontrão e que se tenha desligado qualquer coisa –
sugeriu Jaime, pegando nos materiais necessários.
Enquanto estes se afastavam, com as batas brancas a flutuar ao sabor da
leve brisa, subi a pequena ravina na base da qual se encontravam os
restos do que fora um abrigo – que chamávamos casamata! - e que nos
servia de base de lançamento.
Espraiei os olhos à minha volta: estava rodeado de um grande número de
curiosos que procuravam o melhor local para assistirem ao lançamento do
Orion. Lá no fundo, para os lados da Casa de Chá e do Farol da Boa Nova,
uma multidão de pessoas apressadas aproximava-se do local do lançamento,
desafiando os esforços dos nossos jovens “seguranças” que tentavam que
essa “mole humana” se dirigisse para o perímetro de segurança que
fixáramos previamente.
Olhei o corpo majestoso do foguetão, bem apontado para o céu e que
cintilava beijado pelos raios de sol.
O Eduardo, um dos responsáveis pela segurança do Projecto, juntamente
com outros jovens amigos, empurravam a custo o batalhão de fotógrafos,
operadores de cinema e de TV para uma duna situada a cerca de 100 metros
do local de lançamento. Mas mal estes viravam as costas, os jornalistas
regressavam ao ponto inicial, ávidos dos melhores ângulos para as suas
fotografias...
Desci a ravina e regressei à casamata.
Dei uma vista de olhos no “check in” à minha frente, piquei as tarefas
já executadas e disse maquinalmente:
— 30 minutos para a Hora Zero!
O Jaime e o Daniel que acabavam de chegar olharam o relógio que,
inexoravelmente, se aproximava das 13 horas.
O lançamento do Orion esteve inicialmente marcado para as 12 horas mas,
devido ao grande número de visitantes, tivemos de adiá-lo uma hora.
— Hora zero menos vinte minutos!
O Gaspar acabava de entrar na casamata, furioso e a barafustar:
— Não entendo estes jornalistas! Voltaram a romper o cordão de segurança
e por mais que faça não me obedecem! Já não sei mais que fazer!!
Olhei os jornalistas que, pouco a pouco, se aproximavam (e logo se
instalavam!) cada vez mais da zona perigosa. Olhei o relógio e perdi a
calma:
— Se esses gajos não recuam para as dunas, desta vez aborto mesmo o
lançamento! Gaspar leva contigo o Eduardo e todo o pessoal disponível e
façam recuar os jornalistas para as zonas de segurança. E digam-lhes
mesmo ou eles recuam para as dunas ou abortamos o lançamento! Se há um
azar e esta coisa explode, ficam que nem picado e quem se lixa depois
somos nós!
Continuei com o “check in”, enquanto observava as negociações com os
jornalistas. O Gaspar esbracejava e passeava de um lado para o outro.
Não consegui ouvir o que dizia. De repente correu na nossa direcção e
disse, com um amplo sorriso espalhado no rosto:
— Pronto, pronto, não se preocupem! Vão pôr toda a maquinaria fora das
dunas e apontadas para o Orion e vão-se abrigar dentro do perímetro de
segurança. Se houver qualquer “chatice“ assumem toda e qualquer
responsabilidade. Vão-se as máquinas e ficam eles e ficamos nós sem as
fotos do lançamento!
— Gostava de ver tudo isso passado a escrito! – resmungou o Jaime,
encolhendo os ombros.
— Hora Zero menos dez minutos! — disse eu, olhando os jornalistas que se
instalavam na zona negociada.
Um razoável perímetro de segurança estabeleceu-se, finalmente, junto do
Orion.
De repente, um silêncio sepulcral invadiu toda a região. Parecia que
toda aquela multidão, ululante até aí, tivesse deixado de respirar,
ficando suspensa no que iria suceder no minuto seguinte.
Só o suave murmurar do mar, alguns metros lá em baixo, se associava à
ligeira brisa que soprava...
— Hora zero menos...
— Porra, porra, pára-me essa contagem, Zé ! – gritou o Gaspar
completamente fora de si! — Pára, pára tudo!!! A merda daquela avioneta
está a aproximar-se. Rápido, os gajos da rádio, que lancem um aviso…
Algum dos repórteres ao meu lado – não me lembro bem quem – que faziam a
cobertura em directo do lançamento (ou alguém no aeroporto que os estava
a ouvir), comunicaram com a avioneta que acabou por dar meia volta,
deixando livre o nosso espaço aéreo.
Depois desta ter saído do nosso campo visual e de se ter feito os
acertos nas rotinas de segurança, recomecei a contagem decrescente,
atrasada agora 15 minutos:
— Hora Zero menos quinze minutos!
Encostei-me ao beiral da janela (ao que restava dela!) e respirei fundo.
Olhei à minha volta e vi o Jaime, bem ao meu lado, a verificar com uma
das mãos as ligações do cabo de ignição e a roer as unhas da outra, com
um ar muito compenetrado.
Daniel – apesar de todas as normas de segurança e dos avisos em
contrário - acendeu mais um cigarro que juntou ao outro que ainda
mantinha aceso nos lábios, ajustou a braçadeira na sua bata branca e
fez-me um sinal com a mão dizendo, ao meu olhar reprovador, que tudo
estava bem.
Olhei para cima, para o que fora o telhado da casamata e vi dezenas de
caras que nos observavam, as câmaras de TV que nos seguiam, os “flashes”
que aumentavam ainda mais a minha dor de cabeça...
De repente apercebi-me que até eu estava a roer as unhas! Olhei,
automaticamente, para o Jaime que me sussurrou entre um sorriso breve:
— Também tu, meu filho bruto!!!
Encolhi os ombros e limitei-me a dizer:
— Hora Zero menos dois minutos!
Olhei o céu que se mantinha limpo, as várias equipas nos seus postos, os
jornalistas atrás das dunas. Cocei a cabeça...
— Hora Zero menos um minuto!... – Foi então que senti como se me
tivessem dado um soco no estômago e senti um calafrio a subir-me pela
espinha. Estremeci e encostei-me, ainda mais, ao parapeito da janela...
— ... 30 segundos!...
— Tudo OK! – disse Jaime, enquanto pousava o dedo no interruptor da
ignição.
Olhei para o meu Pai que espreitava lá de cima. Acenou-me; sorri-lhe e
pensei que há dois dias me criticava e que não acreditava no nosso
Projecto!
Continuei a contagem:
— ... 20 segundos!...
— Ignição preparada! – disse Jaime com voz calma e bem segura.
Daniel aproximou-se ainda mais da janela e assestou os binóculos no
Orion.
Limitei-me a prosseguir a contagem:
— ... 10!...
O suor, em camarinhas, começou a escorrer-me pela cara e a camisa, já
completamente encharcada, estava colada às costas. As minhas pernas
pareciam feitas de manteiga…! Sentia-me a cair... Lá, muito ao longe,
ouvia a minha voz a bater dentro da minha cabeça...
— ... 7... 6... 5...
— É agora ou nunca! – sussurrou-me Jaime.
— Faz figas, Zé! – disse-me Daniel, como que numa prece.
Os meus olhos, muito abertos, estavam fixos no foguetão:
— ... 4... 3... 2... 1 ... IGNIÇÃO!!!
Senti, mais do que vi, Jaime a apertar o botão! O berro com que concluí
a contagem foi abafado pelo roncar dos gases expelidos pela tubeira do
Orion, enquanto este se erguia majestosamente nos céus da Boa Nova,
largando um elegante novelo de fumo branco que o acompanhou na subida,
seguido por uma estrondosa salva de palmas da multidão ululante que
assistia ao lançamento do primeiro foguetão português.

Mal gritei “IGNIÇÃO” saí da casamata a correr em direcção à rampa de
lançamento ainda envolta em fumo. Lembro-me de ver o corpo cilíndrico do
foguetão subir no céu. Não me lembro da separação do 2º andar.
Corri, depois, em direcção ao mar, com toda aquela multidão atrás de mim.
(…)

Em 19 de Janeiro de 1964 três jovens “cientistas” fizeram subir nos céus da
Praia da Boa Nova, em Matosinhos, o primeiro foguetão português. Este
“conto” retirado dos apontamentos feitos na altura, tenta relatar o
acontecimento que atraiu milhares e milhares de pessoas para assistirem a
uma experiência científica e como isso entusiasmou os meios de informação
deste país.
No local do lançamento começou, mais tarde, a ser construída uma Refinaria
de Petróleo... Ainda hoje existe!
José Gomes